Histórias da infância distante


Escrito por Gilka Girardello

A cena da avó na cadeira de balanço contando antigas histórias para os netinhos é coisa do passado nas grandes cidades de hoje - afinal, mudaram as famílias e mudaram as avós. Mas podemos tomar essa imagem de um jeito mais simbólico, mais arquetípico, referindo-se a todos os adultos que contam coisas de sua infância para as crianças. E aí a cena poderá virar fonte de energia e de inspiração para o trabalho dos contadores de história de hoje.

Um poeta e pedagogo russo, Kornei Chukovski, disse há quase cem anos que tendemos a contar às nossas crianças as histórias, poemas e cantigas que mais nos tocaram quando nós próprios éramos crianças. E que só nos ficaram na memória aquelas que tinham algo de especial, engenhoso ou profundo. Assim, diz Chukovski, no fim das contas quem escolhe as histórias para as crianças de hoje são as crianças de ontem! Como numa corrida de revezamento, a criança de uma geração recebe uma tocha e atravessa a vida carregando-a acesa na profundeza da memória para entregá-la à criança que espera ansiosa na próxima curva do percurso.
Se isso vale para as histórias e cantigas que ouvimos quando crianças, vale também para as narrativas de nossas pequenas e grandes aventuras cotidianas. Muitas vezes meu pai nos contou – a mim e aos meus irmãos - da primeira noite em que a luz elétrica iluminou sua cidadezinha natal, no interior do Rio Grande do Sul, quando ele tinha uns cinco anos de idade. “Me lembro como se fosse ontem”, dizia, e os olhos dele se iluminavam como as ruas e a praça onde em 1925 o povo boquiaberto se maravilhara com a chegada do futuro.
Aos poucos também as histórias que a gente viveu vão ficando antigas – dependendo de quem ouve e por mais que o fato nos pegue de surpresa - e com sorte vão ganhando um discreto charme por conta disso. Lembro do assombro incrédulo na cara de meus filhos quando lhes contei do dia em que a televisão – em preto-e-branco! - chegou na nossa cidade, a Porto Alegre da década de 60. Era um assombro parecido com o que eu devia mostrar a meu pai quando ouvia as suas histórias de menino.
Os casos que lembramos de nossa própria infância são aqueles que mais impressionaram a menina ou o menino que fomos, ainda que nem sempre saibamos por quê. Frequentemente esses casos têm a ver com coisas que vimos pela primeira vez, não só novidades tecnológicas como a lâmpada elétrica ou a televisão, mas todo o contato com o novo. Quem não tem uma história de família sobre a primeira vez em que uma criança viu o mar? A primeira viagem de avião ou de barco, o primeiro encontro com um grande animal (seja o cavalo no pasto ou o leão no circo), a primeira vez em que quebramos um braço ou em que nos perdemos na multidão: a primeira vez a gente não esquece mesmo, porque a imaginação infantil se nutre de coisas novas.
Uma vez, na Inglaterra, assisti à visita de um contador de histórias a uma escola, onde ele tinha ido contar suas memórias da Segunda Guerra, tema que as crianças estavam estudando. Ele, que se chama Geoff Fox, era um menino de cinco anos quando um pequeno avião militar perdeu força e caiu bem em cima da casa onde ele morava. Geoff começou a narração contando que naquela tarde de 1940 estava deitado no sofá, lendo avidamente uma revista infantil que recebia todo mês. E ele contou para as crianças na sala de aula, com detalhes, a história que estava lendo no exato momento em que o avião entrou parede adentro, por sorte sendo detido por uma pesada cômoda de madeira maciça (“que está lá em casa até hoje, com a madeira lascada pelo impacto”). “E o pior” , prosseguiu ele, “foi que na confusão perdi a revista e fiquei sem saber o fim da história!”. Ouviu-se um “óóóóóhhh” geral de desapontamento na sala de aula. As crianças tinham se identificado com o menino que Geoff fora cinquenta anos antes: tanto aquele senhor grisalho que os visitava quanto a própria Segunda Guerra Mundial haviam ganho novo sentido para elas. E quando todos pensavam que a narração tinha acabado, Geoff tirou de uma maleta - resgatado de um “sebo” após anos de busca - um exemplar intacto da revista perdida! As crianças ouviram o final da história, e a sessão teve um fecho de ouro.
Outro caso exemplar é o que Army Capanema, uma narradora de Florianópolis hoje com quase 80 anos, costuma contar: ela era menina e brincava com o irmão no armazém de secos-e-molhados de seu pai quando caiu dentro do poço onde era guardado o feijão a granel. Ouvi-a contar esse caso mais de uma vez e ouviria muitas mais, tão saborosa é sua performance. Army conta que o armazém vendia de tudo e era o ponto de encontro da região: “como um shopping”, ela explica. E segue, pontuando seu relato com comentários coloridos e divertidos, com a autoridade de quem é dona daquela história. Em sua voz, ressurge à nossa frente a menina moleca e arteira que ela foi, e que de certo modo continua sendo – ou não nos faria rir tanto com sua pequena desventura.
Graciliano Ramos, Sartre, Walter Benjamin e tantos outros escreveram livros inteiros dedicados às lembranças longínquas de seus primeiros anos; são relatos às vezes cheios de névoa, outras vezes surpreendentemente precisos. E García Márquez chegou a dizer que nada de interessante lhe aconteceu após os oito anos de idade, nascendo das suas lembranças de infância todo o poder gerador de sua obra. O olhar da criança agiganta e enche de significado os pequenos detalhes do cotidiano, como o torneado de um móvel, o pregão de um vendedor, os rituais familiares.
Quando o olhar enfeitiçado da criança se depara com incidentes que são marcantes também para os adultos, então o efeito se intensifica. Vem daí a vividez das imagens que guardamos dos grandes acontecimentos históricos que vivemos, ainda que de longe ou pela televisão. Essa nitidez está por trás do jogo narrativo que começa com a pergunta: “onde você estava quando.....? Gente da minha geração lembra, por exemplo, o golpe de 64 ou a chegada do homem à lua, que aconteceram quando éramos crianças. Outros perguntam o que os amigos estavam fazendo quando souberam da morte de Ayrton Senna, dos Mamonas Assassinas, ou da queda das torres de Nova York. A memória vai salvando aquelas cenas de nossa vida com as cores do mito, e isso passa para o relato oral, tornando-o especialmente valioso.
É clara a importância das pequenas anedotas de família – esses casos de nossa infância que contamos aos filhos e filhas, sobrinhos ou netos - no processo de identificação e auto-construção das crianças. Mas as histórias da infância dos indivíduos têm um papel que transcende a família: elas podem trazer coesão, significado e riqueza simbólica a comunidades inteiras. Que não tenhamos que esperar os cabelos brancos para compartilhar nossas mais divertidas, assombrosas e emocionadas histórias de infância. Mesmo crianças de oito anos podem sentir suas próprias primeiras lembranças misteriosas e distantes como fotos desbotadas, o que enche de encanto seus recontos. Quanto a quem já viveu muito, as memórias da infância podem estar tão tenras e frescas, que tornam-se apenas um jeito de contar não o que se foi um dia, mas o que se continua sendo.


Gilka Girardello é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Catarina. É Coordenadora do Núcleo Infância, Comunicação e Arte da UFSC, contadora de histórias e jornalista.



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