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As Três Fiandeiras: Bordando vida e teatro com plenitude


17 de novembro 2015 | por Beth Néspoli • São Paulo

Em São Luís
Pode nem ter sido proposital, mas o contraponto entre as formas dramática e a narrativa no espetáculo As três fiandeiras, apresentado já na reta final da X Mostra de Teatro no Maranhão, funciona como uma espécie de argumento a favor da segunda.
Na abertura da peça, Gisele Vasconcelos, Renata Figueiredo e Rosa Ewerton, as três intérpretes do trabalho – parceria entre os grupos Xama e Petit Mort – representam atrizes que, num camarim logo após a apresentação, entram em acalorada discussão sobre os problemas da companhia, desde os práticos, como contas a pagar, passando pelos da poética escolhida. A situação é relevante, mas, tratada por meio do diálogo entre o trio e tendo como espaço de ação um camarim, prometia girar em círculos sem ir muito além do campo das emoções pessoais. Porém, após essa espécie de prólogo o trio passa a trabalhar com a forma narrativa – o mote é preparação de um novo espetáculo – e aí o palco se torna território aberto ao trânsito da alteridade e do maravilhoso, um lugar onde diferentes prosódias ressoam e há espaço para a interferência do mito na vida cotidiana.
Mas o contraponto não se dá por acaso. Gisele e Renata são pesquisadoras com longa experiência, e repertório, na técnica de contar histórias. Para a criação do espetáculo, realizaram uma pesquisa sobre o cotidiano das rendeiras da Raposa, munícipio situado na região metropolitana de São Luís. Assim, a fonte de inspiração é a cultura dessas mulheres de pescadores que dominam a técnica artesanal da renda de bilro, uma cultura em risco de extinção, uma vez que as mais jovens não mais se interessam por aprender o ofício.
Autor e atrizes emprestam a essas mulheres atributos do herói guerreiro, um arquétipo masculino, aquele que enfrenta obstáculos para além de suas forças e realiza a saga da superação, transformando a si mesmo e destruindo algo que pedia transformação em seu mundo
Ainda que não toque no tema dessa possível extinção – ao contrário disso, o espetáculo vitaliza essas figuras e seu imaginário – a abordagem desvela os múltiplos significados dessa perda que abriria um vazio para muito além da ausência de um bordado. É todo um modo de se apropriar do idioma, toda uma relação com o tempo e com a existência que deixará de existir. Enquanto tecem fios, com os olhos atentos ao bordado, resta os ouvidos e a voz para tramar acontecimentos e ideias. Assim essas mulheres conseguem escapar ainda hoje da crescente padronização do idioma, possuidoras que são de expressões muito singulares para nomear as coisas do mundo e até mesmo os filhos.
Nessa experiência de convívio e observação as atrizes colheram os fios que tramaram em parceria com o dramaturgo Igor Nascimento, também diretor da montagem,a quem coube o trabalho “roseano” de burilar expressões e palavras. Ele teceu um intrincado bordado entrelaçando o cotidiano mais prosaico – a comida, o sexo, as relações amorosas –, o universo dos mitospopulares – como a Mãe D’água e o Pioco, um ser muito feio que seduz as mulheres e as leva para o fundo do mar prometendo uma vida no seu castelo, onde as devora – e questões que envolvem a condição feminina. O roteiro mescla drama e humor no desfiar de casos e conversas de mulheres de pescadores, porém há um em especial que serve de fio condutor: a mãe em busca do filho caçula que contra todos os seus cuidados aos 15 anos seguiu os demais, foi para o mar, e sumiu numa noite de tempestade. Decidida a trazê-lo de volta, se não vivo, ao menos o seu corpo de afogado ou, na falta deste, “o bicho que devorou o menino”, ela parte para o mar junto com duas amigas.
Vale sublinhar na encenação o tratamento dado às entidades, trazidas à cena numa medida muito precisa de modo a não perder sua aura de seres de outra dimensão, mas também não ganharem a frieza do divino apartado dos homens. Afinal, tais figuras se tornam visíveis quando querem, mas não seres estranhos ao ambiente nessa cultura que ainda resiste ao desencantamento do mundo. Aspecto reforçado pela direção ao evitar o aparatoso. A cenografia é constituída basicamente de alguns carreteis feitos de madeira que, manipulados, se transformam de barco até pé-de-Pioco. As atuações seguem a mesma linha: as atrizes puxam suas longas saias para cobrir as cabeças e assim, com esse gesto simples, e mudança na entonação da voz e da atitude corporal elas próprias encarnam as entidades. Parte significativa do envolvimento que o espetáculo provoca e da emoção que desperta deve-se à qualidade de interpretação em especial da dupla Gisele e Renata, que demonstra mais afinidade com a linguagem escolhida.
Despojada, de uma simplicidade só alcançada com muito trabalho, As três fiandeirasé dessas obras que nascem com vocação de público amplo, sem que isso tenha implicado concessão de linguagem. Vale ainda ressaltar o tratamento ao feminino, em especial o modo como a dramaturgia desloca as personagens de seu lugar na cultura local na atitude de tomar um barco e partir para o enfrentamento do mar bravio. Autor e atrizes emprestam assim a essas mulheres atributos do herói guerreiro, um arquétipo masculino, aquele que enfrenta obstáculos para além de suas forças e realiza a saga da superação, transformando a si mesmo e destruindo algo que pedia transformação em seu mundo.
Ao longo da trama, há pérolas como os preparativos delas para ir ao mar só com o “essencial”. Muito sutilmente, o espectador é conduzido a rir quando nessa carga entra desde foto de filho e bilhete para Iemanjá. Mais adiante, no roteiro, o que parecia quinquilharia afetiva vai adquirir alta relevância, provocando uma reversão de expectativas que valoriza facetas do feminino em geral desprezadas pelo masculino –  contraponto evidentemente tratado aqui não como oposição de gênero, mas de aspectos da cultura. O mesmo jogo se dá com a expressão “qualquer um” com que uma delas se refere ao desejo de marido. Na primeira vez que fora dita parecia só (boa) tirada de humor, mas ganha outro peso mais adiante numa cena de individuação fundamental na estrutura da dramaturgia.
Apresentado no palco do Teatro Arthur Azevedo – atrizes e público acomodados no tablado – com plateia mais numerosa do que a cena pedia, algumas falas se perderam, alguns gestos pareciam ainda pedir um acabamento de sintonia mais fina. Detalhes que não chegaram a comprometer a qualidade geral da montagem e sempre podem ser ajustados ao longo das temporadas. Que sejam muitas.
.:. Escrito no contexto da X Semana de Teatro no Maranhão, em São Luís (9 a 15/11). A jornalista viajou a convite da organização.
.:. Em tempo: As três fiandeiras foi o espetáculo vencedor do 23º Prêmio Artes Cênicas Nascente 2015, realizado pela USP.
Ficha técnica:
Dramaturgia e direção: Igor Nascimento
Com: Renata Figueiredo, Gisele Vasconcelos e Rosa Ewerton
Direção musical e preparação vocal: Gustavo Correia
Figurino: Cacau di Aquino
Iluminação: Camila Grimaldi
Cenografia: Ivy Faladeli
Identidade visual: Maurício Vasconcelos
Fotografia: Márcio Vasconcelos
Produção: Grupos Xama Teatro e Petite Mort

Jornalista e doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Durante 15 anos, entre 1995 e 2010, escreveu no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S.Paulo, atuando como repórter especializada em teatro e, a partir de 2003, também como crítica teatral. Realizou a cobertura de diversas edições de festivais internacionais de teatro em cidades como Porto Alegre, Recife, Londrina, São José do Rio Preto e Belo Horizonte. Foi jurada do Prêmio Shell e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Tem artigos publicados na revistaSala Preta, da ECA-USP; no livro Próximo ato: teatro de grupo; e nas revistasSubtexto e Cult.



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